Pra não dizer que não falei do cale-se colérico às vozes da MPB!


CONHEÇA ALGUMAS DAS CANÇÕES ALVO DO REGIME TOTALITÁRIO

Vivemos atualmente sob o governo de Jair Bolsonaro, terceiro militar eleito democraticamente no Brasil, que traz na sua história política de quase trinta anos como parlamentar, homenagens a torturadores e a defesa dos chamados “anos de chumbo”, que sucederam o golpe civil-militar de 1964. Nesse artigo mostro a história de algumas das canções censuradas durante os 21 anos de regime totalitário, que não ficam restringidas às letras de protesto ou cunho político, mas à qualquer música que fosse contra à moral e bons costumes, impostas pelos militares e seus apoiadores.

O órgão responsável pela avaliação das obras encaminhadas pelos artistas era a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), vinculada ao Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça. Com o fim do duro regime (AI-5) em dezembro de 1978, em 1979, foi criado o Conselho Superior de Censura (CSC), para mostrar menos rigidez na avaliação, mas na verdade as obras continuaram sendo proibidas por motivos, muitas vezes, inacreditáveis.

O golpe e o começo do cala-boca

No dia 31 de março de 1964 com o golpe de Estado foi instituída a ditadura militar no Brasil, resultando no afastamento do presidente João Goulart – o Jango - e a tomada de poder dos militares com a posse do marechal Castelo Branco, que justificava a ação alegando que o país estava sob ameaça comunista. Começou, então, o ataque do governo à liberdade de expressão, suprimindo ou interferindo nas organizações representativas da sociedade, e a repressão junto aos meios de comunicação e às manifestações artísticas.

Minha mãe, a jovem cantora Loiva Terezinha, foi uma das primeiras artistas a sentir os dissabores da censura, já que estava se apresentando e participando de entrevistas em rádios e tevês, motivadas pelo sucesso do samba ‘Fuzil na Mão’. A composição de Demóstenes Gonzalez, avaliada como expressão comunista, precisou ser retirada do disco de sambas que acabara de lançar pela gravadora Califórnia. Nessa época eu estava com quatro anos e minha irmã com seis anos. Tratando-se do início da transição do regime, foram somente impedidos de divulgar a canção de protesto. Logo, ela foi contratada pela gravadora Chantecler, onde gravou mambos, tcha-tcha-tcha e guarânias com grande orquestra, entre elas 'Olá, você por aqui', e 'Mamadeira', que fizeram parte do disco Grandes sucessos Chantecler, uma coletânea dos artistas de maior expressão da conceituada gravadora da época. 

Golpe dentro do golpe

Se nesse período inicial a liberdade era quase inexistente, quatro anos mais tarde, precisamente em 13 de dezembro de 1968, a perseguição e a punição chegou pesada com a retirada das garantias constitucionais, quando foi editado o ato institucional (AI-5), chamado à época pelo Jornal Correio da Manhã de o “Golpe dentro do golpe”, sendo ele e o Estado de São Paulo, impedidos de circular suas edições após serem ocupados pela polícia. Começara, então, o período denominado “anos de chumbo”, que vai do governo de Costa e Silva até o fim do Governo Médici.

A ‘Hora do Brasil’ ainda não havia divulgado o AI-5, mas os atos já estavam sendo praticados pela polícia, que prendeu milhares de pessoas consideradas perigosas pela segurança nacional. Foi tocado o terror no início de 1969, com cassações, intervenções à diretorias sindicais, universidades, suspendendo professores, alunos, funcionários, sempre acusados de participarem de “atividades subversivas”, ou seja: não concordavam com suas ideias e ações.

Cala-boca gratuito e exílio

A repressão aos meios de comunicação e às manifestações artísticas durante os onze anos do AI-5 foi algo nunca vivido em qualquer período de censura. Diferente do início do golpe, como aconteceu no caso de minha mãe, onde a mensagem subversiva estava clara, a censura a partir do AI-5 não tinha qualquer base que a justificasse, tendo como foco, de uma forma geral, as manifestações culturais e artísticas, rejeitando conteúdos e punindo responsáveis de novelas, peças de tetro, livros, e até o simples fato de ser russo, proibindo apresentação do Balé de Bolshoi no Brasil.

Qualquer manifestação de resistência ao regime militar era combatida com intolerância, severidade e até mesmo crueldade, perseguindo, prendendo e torturando, como aconteceu com Geraldo Vandré, autor de ‘Para não dizer que não falei das flores’, canção que se transformou numa espécie de hino da resistência. Mas foram muitas as pessoas vitimadas psicológica e fatalmente, muitas, inclusive, desaparecidas até os dias de hoje, e outras forçadas ao exílio, dentre elas o dramaturgo do Teatro de Arena, Augusto Boal; o cineasta Glauber Rocha; e os músicos Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque, que, muitas vezes, tinham suas canções censuradas por motivos sórdidos, bastando até um erro ortográfico em certos casos.

Algumas dessas canções censuradasClique no título para ouvir

ACENDER AS VELAS – Lançada em 1965, o samba de Zé Keti, assim como o samba Fuzil na Mão de Demóstenes Gonzalez, gravado por Loiva Terezinha, igualmente impactava pela crítica social à situação dramática e violenta em que vivia os pobres moradores dos morros cariocas: Acender as velas / Já é profissão (...) O doutor chegou tarde demais / Porque no morro / Não tem automóvel pra subir / Não tem telefone pra chamar / E não tem beleza pra se ver / E a gente morre sem querer morrer;

OPINIÃO – Outra canção de Zé keti. Gravada em 1964, foi censurada em 1968: Podem me prender / Podem me bater / Podem até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião / Daqui do morro / Eu não saio, não;



ALEGRIA, ALEGRIA – lançada em 1967, com essa canção Caetano Veloso inaugurou o movimento tropicalista: (...) O Sol se reparte em crimes / Espaçonaves, guerrilhas / Em cardinales bonitas / Eu vou / Em caras de presidentes / Em grandes beijos de amor / Em dentes, pernas, bandeiras / Bomba e Brigitte Bardot (...) Caetano foi classificado como “persona non grata”, ficando exilado em Londres por quase dois anos - até 1972.


É PROIBIDO PROIBIR - Caetano Veloso lançou essa música em 1968, sendo mais uma manifestação da Tropicália, pelas mudanças culturais que movimentavam o mundo todo: (...) Me dê um beijo, meu amor / Eles estão nos esperando / Os automóveis ardem em chamas / Derrubar as prateleiras / As estátuas , as estantes / As vidraças, louças, livros, sim / Eu digo sim / Eu digo não ao não / Eu digo / É proibido proibir (...) Foi ao cantar essa canção que Caetano recebeu vaias ensurdecedoras do público em show realizado no teatro Tuca, culminando num discurso inflamado do cantor baiano.

 

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES – Essa canção-hino de resistência dos movimentos contra a ditadura, deu o segundo lugar a Geraldo Vandré no Festival Internacional da Canção, em 1968. Foi censurada por provocar a resistência popular contra a opressão e a violência do poder:  (...) Nas escolas, nas ruas / Campos, construções / Somos todos soldados / Armados ou não / Caminhando e cantando / E seguindo a canção / Somos todos iguais / Braços dados ou não (...);


APESAR DE VOCÊ – Em 1970, quando general Médici estava no poder, Chico Buarque conseguiu gravar a canção e lançar sua voz na grande audiência do rádio, com justificativa de a letra retratar o conflito de relacionamento entre um marido e sua mulher. Mas logo o alto comando do exército trouxe para si a mensagem de que apesar do poder opressor o fim da ditadura chegaria, e proibiu a veiculação da música, que só retornou depois de oito anos, quando findava o governo do general Ernesto Geisel. Talvez a canção que retrata com maior clareza aquele regime opressor que o pais vivia: Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão / A minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu / Você que inventou esse estado / E inventou de inventar / Toda a escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu-se de inventar / O perdão / Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia (...) Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro (...) E eu vou morrer de rir / Que esse dia há de vir / Antes do que você pensa;


CÁLICE – Talvez seja uma das canções mais vigorosas e expressivas dos tempos de opressão e domínio militar. Composta por Chico Buarque e Gilberto Gil, foi gravada em 1973, recebendo o veto da censura no dia 10 de maio do mesmo ano, com a observação “cale-se”, escrita à caneta pelo censurador, ao lado de cada vez que aparece a expressão “cálice” no refrão: “Pai, afasta de mim este cálice”, alusão à oração de Cristo no Jardim do Getsêmane, quando se dirige a Deus. Aos que enfrentavam a ditadura e defendiam o direito de serem escutadas, o calar-se, destarte, também fenecia: (...) Como é difícil acordar calado / Se na calada da noite eu me dano / Quero lançar um grito desumano / Que é uma maneira de ser escutado / Esse silêncio todo me atordoa / Atordoado eu permaneço atento / Na arquibancada pra a qualquer momento / Ver emergir o monstro da lagoa (...). A canção foi lançada ao final do ato, em 1979, em marcante dueto com Milton Nascimento. 


QUE AS CRIANÇAS CANTEM LIVRES – Taiguara, o cantor mais censurado da ditadura militar, com 68 músicas vetadas entre o final da década 1960 e meados da década 1970, lançou esta canção em 1973 e logo se exilou em Londres, retornando ao país em 1975 para dividir show com Hermeto Pascoal e Wagner Tiso, que foi cancelado. O dinheiro da bilheteria foi apreendido pela polícia, o que motivou Taiguara a fugir novamente e só retornar com o fim da ditadura militar. Diz a última estrofe da canção: E que as crianças cantem livres sobre os muros / E ensinem sonho ao que não pode amar sem dor / E que o passado abra os presentes pro futuro / Que não dormiu e preparou o amanhecer...


TINTA FRESCA
– Essa canção de Taiguara, censurada em 1974, recebeu a observação da censura de que “Os incomodados que se mudem (...), grifando o trecho: (...) Não me queixo do meu fado / Não se eu quiser me deixar sair / me abre essa porta / E me deixa sair (...) Deixa eu dar o meu palpite (...). Filho de pai gaúcho e mãe uruguaia, nasceu em Montevidéu, mas ainda criança foi morar no bairro carioca de Santa Teresa. Ficou conhecido por lindas canções românticas, como: "Hoje", "Viagem" e "Universono teu Corpo", maior sucesso do artista, que com a perseguição se aproximou da luta política, militando no Partido Comunista, sendo obrigado a fazer autoexílio em Londres e na Tanzânia, conforme consta na biografia do artista, que deixou-nos precocemente aos 50 anos, em 1996, decorrente de um câncer.


CÉU-PAÍS – A canção escrita em 1973, está entre as 54 composições de Gonzaguinha vetadas pela censura, que liberou somente 18. Céu País não saiu das gavetas da ditadura militar, mas ganhou vida através da tecnologia em uma produção da Antarctica, com reconstruções feitas com sua própria voz, captadas de materiais gravados em vida, dando recortes a cada palavra, vindas de entrevistas, áudios e outras peças originais, sendo recriada com a base de um intérprete com o mesmo timbre de voz. Nas anotações, o censor observa que a composição “Critica a passividade e acomodação burguesa, relacionando-se ao trecho: (...) Ei Deus / Mas será que é isso a felicidade / As perguntas mudas de barriga cheia / Passividade! / Céu, País!


JORGE MARAVILHA – Após o episódio ocorrido com “Apesar de Você” – a “rasteira” e posterior censura da canção – o carimbo “Censurado” virou clichê nos registros em nome de Chico Buarque, que em 1974, se utilizando do pseudônimo Julinho de Adelaide, mais uma vez conseguiu engambelar a censura e lançar “Jorge Maravilha”, onde, aparentemente, tratava-se de um conflito familiar, onde o genro manda uma mensagem ao sogro: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. Porém, alertados por reportagem do Jornal Brasil, a trama foi descoberta e mais uma vez o carimbo colérico agiu. Com a “deduragem” da mídia chapa branca, foi determinado que os pedidos de registro tivessem anexados dos documentos do autor. Falou-se muito tratar-se de uma indireta ao presidente general Ernesto Geisel, que manifestava sua repulsa pelo artista, apesar de a filha Amália Lucy fazer declarações públicas sobre seu amor pelo cantor. Chico, em 1977, entrevistado pela Folha de SP, 1977, declarou que o verso retratava um episódio de quando preso no Dops, um segurança solicitou-lhe um autógrafo, dizendo ser um pedido de sua filha.


HOJE É DIA DE EL-REY – Canção de Milton Nascimento e Dorival Caymmi, gravada em 1973, que aborda um diálogo entre pai e filho, julgado pelo censor como “Conteúdo, nitidamente político”, também recebeu a carimbada “Censurado”. A linda composição: “Filho, meu ódio você tem / Mas El Rey quer viver só de amor / Sem clarins sem mais tambor/ Vá dizer: nosso dia é de amor” E o filho diz: “Juntai as muitas mentiras / jogai os soldados na rua / nada sabeis desta terra / hoje é o dia da lua / Leva daqui tuas armas / então cantar poderia / mas nos teus campos de guerra / hoje morreu poesia”.


O BÊBADO E A EQUILIBRISTA – A composição de Aldir Blanc e João Bosco, com o fim do duro regime (AI-5) em dezembro de 1978, foi gravada por Elis Regina em 1979, marcando o pedido da população e ficando conhecida como o “Hino da Anistia”. Além de cobrar a “volta do irmão do Henfil” - sociólogo e ativista Hebert José de Sousa, exilado no México – a canção relata o choro de Marias e Clarisses, uma referência às esposas do operário Manuel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog, torturados até a morte no período dos “anos de chumbo”.

 

FALTA DE GOSTO, SEXO, MORAL E BONS COSTUMES

Não eram só os apelos políticos que sofriam a censura da ditadura militar, que anotavam também em suas folhas de análise, proibições de veiculação por diversos outros motivos, como é o caso de Adoniran Barbosa, que em 1973 teve cinco composições suas censuradas por “falta de gosto” e erros na grafia: Tiro Ao Álvaro”, “Um Samba no Bexiga”, “Casamento de Moacir”, “Despejo na Favela” e “Já fui uma Brasa.

Com a avaliação de que suas letras falavam de sexo, brincavam com o que não deveria e contrariavam a moral e os bons costumes, Odair José, também em 1973, teve várias composições suas desaprovadas pela censura do governo militar, entre elas: Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”, “VouTirar Você Desse Lugar“, “Deixe Essa Vergonha de Lado”, “Cristo, Quem é Você?”, e “Vou Morar Com Ela” .

 

CENSURA PÓS FIM DA CENSURA

Mesmo não vigorando mais a censura do AI-5, que até dezembro de 1978 produziu sua coleção de ações desnecessárias, aleatórias e abusivas contra os considerados inimigos, a censura seguia impedindo canções, através do Conselho Superior de Censura (CSC), que continuou barrando obras de artistas da MPB e do rock nacional, conforme aconteceu com a proibição de duas faixas do álbum independente da banda Blitz, que já havia produzido 30 mil cópias. A solução encontrada por Evandro Mesquita e os outros músicos da banda, para cumprir as determinações do órgão de censura do governo, foi a de riscar manualmente todos os exemplares dos vinis.

Acredite se quiser! As canções “Cruel Cruel Esquizofrenético Blues“, e “Ela QuerMorar Comigo na Lua”, foram censuradas por conter as palavras “peru” e “bundando”. Após a redemocratização, em 1988, foram inseridas na versão CD do disco.

Além de a Blitz, outras bandas de rock sofreram censura, entre elas o Capital Inicial, Inocentes e Legião Urbana, além dos artistas da MPB, que continuaram tendo suas obras sob a mira do governo. Em 1984, Caetano Veloso teve a canção ‘Vaca Profana’ censurada, sob o argumento de que seu título e o conteúdo da letra, além de mau gosto, feria a moral e bons costumes.

 


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