“Quando o dedo aponta para o céu, o idiota olha para o dedo... são tempos difíceis para os sonhadores!”


O filme francês ‘Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain’ (O Fabuloso Destino de Amélie Poulain), de 2001, com as impecáveis atuações de Audrey Tatou (Amélie) e Mathieu Kassovitz (Nino), na minha opinião, é uma das grandes obras da dramaturgia audiovisual de todos os tempos.

Mas tenho um olhar muito especial ao belíssimo roteiro de Jean-Pierre Jeunet e Guillaume Laurant, sobretudo, à forma brilhante com que ele foi conduzido por Jean-Pierre Jeunet, construindo progressivamente as relações entre os personagens e suavizando com empatia o sentimento de dor da solidão. Aclamado pela crítica, o roteiro teve cinco indicações ao Oscar.

Refletindo pouco mais, arrisco dizer tratar-se de produção simples e empática, aliás uma marca das produções francesas. A sintonia está na quente fotografia bucólica de Bruno Delbonnel, na leveza da requintada trilha sonora assinada por Yann Tiersen, mas a máxime está na riqueza dos poucos e marcantes diálogos, que apesar de curtos são memoráveis, tamanha intensidade e sutileza no relacionamento de Amélie com a vida, priorizando as pequenas coisas sob o olhar do mundo.

Assim como a personagem Amélie, que nasceu com o dom da observação e do encantamento com as pequenas coisas, a garota que no cinema observa mais a reação das pessoas do que assiste ao filme, ao rever o longa francês dias desses na minha demorada viagem de trem para o trabalho, olhando os amedrontados olhos esbugalhados das pessoas por sobre as máscaras, e ao mesmo tempo indiferentes à mulher que alertava o jovem sobre o erro de usar a máscara no pescoço, me marcou um desses expressivos diálogos curtos, quando o menino no parque diz pro Nino: “Quando o dedo aponta para o céu, o idiota olha para o dedo!

Os dias que estamos vivendo deveriam aproximar mais as pessoas, torna-las mais empáticas. Mas ainda muito pouco mudou. Continuamos ignorantes e exclusivistas, como há milhares de anos da história humana, sendo manipulados pela minoria egocêntrica que concentra o poder e a riqueza. Não seria este um momento de o mundo refletir melhor sobre seus atos? Não seria a oportunidade de olharmos o céu e não o dedo que aponta? Talvez esteja sendo visionário diante da verdade cruel. Como diz Amélie a Nino: “são tempos difíceis para os sonhadores”.

Sonhadores que sonham um mundo mais sintonizado com o respeito ao próximo; que não ignore a fome e a solidão do morador de rua. Sonhadores que não aplaudem o policial que pisa no pescoço do homem preto até a morte, enquanto protege suas imundas mãos brancas no bolso do uniforme. Sonhadores que sonham a justeza da Justiça; que sonham um mundo sem discursos de ódio, preconceito, ameaças ou intolerância de qualquer tipo.

“São tempos difíceis para sonhadores” que sonham um governante preocupado com a vida das pessoas e não minimize a gravidade de uma pandemia global tão devastadora, tratando-a como uma “gripezinha” e convocando mais de 200 milhões de pessoas a “enfrentar o vírus como um homem”, e sem qualquer sentimento de compaixão, se expressando com desdenho e gracejo sobre a doença e suas vítimas.

“São tempos difíceis para sonhadores” que não se conformam haver líderes brucutus que espalham e alimentam ciclos de ódio, fechando todos os espaços para o diálogo, que passam a ser ocupados por pessoas de olhos fechados para o humano do ser, cultivando a humilhação, o egoísmo, o desamor e o desprezo às minorias, à ciência, ao estudo, à cultura, formando um sistema de crenças unidas pela incerteza

“São tempos difíceis para sonhadores” que sentem-se fragilizados diante de verdadeiros robôs programados a dizer sim às teorias conspiratórias, buscando sempre “ligar os pontinhos” e acreditar, por exemplo, que as torres de 5G propagam o vírus covid-19, que a terra é plana, que o coronavírus foi criado num laboratório chinês para ser usado como arma de guerra biológica, ou que a “Globolixo” inventa mortes para prejudicar seu mito, ignorando a realidade que acomete o planeta.

Para nós “sonhadores”, como canta Gilberto Gil, “mistério sempre há de pintar por aí”, e é para desvendá-lo que devemos investir nos estudos da ciência, da pesquisa, da medicina, no conhecimento científico e cultural.

“São tempos difíceis para sonhadores” que acreditam ser o amor, a caridade, a única forma real de salvar o mundo, e que devemos praticá-las diariamente como vacina para combater o contagioso ódio e curar a ignorância coletiva. E sabemos ser difícil, mas devemos persistir enquanto houver amanhã, já que “quando o dedo aponta para o céu, o idiota olha para o dedo”, fazendo sinal de arma com uma mão e segurando a bíblia sagrada com a outra.

Comentários